Perspectiva

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Se há algo inegável sobre mim, é que tem sido de muita dificuldade me expressar nos últimos tempos. Se me perguntam como estou, não é possível que, com palavras, tão naturalmente eufêmicas, eu seja capaz de transpassar ao outro todas as estrelas que habitam a minha alma desde aquele dia cinco. Comumente me vem a ideia de que essa é mais uma das tantas coisas que nós, e só nós dois entendemos...
Desde que você chegou, as mágoas caem como chuva, e eu, com meu guarda-chuva florido, adentro numa casa sem espaço algum pra infelicidade, com um relógio na parede improvável de indicar um intervalo maior do que cinco segundos sem um sorriso — meu ou seu, e, por isso, sempre nosso. Cada parte dessa nossa nova casa é atingida pelos suaves rodopios do acaso: atingem o rádio, quando eu o ligo numa tarde vazia e uma estação qualquer está começando a tocar aquela música que cantamos juntos enquanto caminhávamos na rua, em meio a noite, agindo como se ninguém estivesse ali para nos ouvir. Atingem os céus, quando a noite chega e a lua aparece bem aqui, na janela do meu quarto, luzindo feito a sua boca de luar, capaz de iluminar cada livro na estante  minha, em breve nossa , cada retrato na escrivaninha, cada disco sobre a mesa e cada lençol sobre a cama, amassado.
É quando eu me vejo te encontrando dentro de cada página do Drummond. Dentro de cada pequeno pedacinho do Leminski, do Fonseca, do Pessoa, se infiltrando na voz do Camelo, do Buarque, do John e de cada um dos tantos que nos compõem, atingindo veloz, como mera consequência, o que se vê no espelho. 
Do outro lado da cidade, você se vê refletido em mim. Sob as mesmas diferentes perspectivas, nos fundimos pouco a pouco em cada pequena grande parte do que somos, e o que vejo a minha frente é um mero reflexo do sorriso teu. Meus olhos, perdidos dentro desse teu olhar-de-céu, navega por entre mares de estrelas azuis a penetrarem feito água na pele tua.
E eu, entre quatro paredes, ergo a cabeça e me vejo aquém destas nuvens absorvidas por esse sem-teto de gris. Quando dou por mim, percebo que é questão de fechar os olhos para poder voar. Voando feito uma folha seca que se desprende fora de hora duma árvore  em plena primavera , mantenho os olhos fechados, e transpasso livre por entre estrelas azuis, bocas escancaradas e luas sorridentes.
Acabo por te encontrar no meio do caminho: assim, de pálpebras cerradas, fic
a fácil te reconstituir. E então sigo, com minha mão e minha alma entrelaçadas as suas, voando rumo ao outro lado daquele espelho pregado na parede, encostado no retrato de nós dois.

É quando logo percebo que estou rumando a infinitude do sorriso que te invade a alma, sempre recém-descoberta.
Sempre aliada a minha.