Relato de uma manhã qualquer posterior a você

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Acabo de acordar. Está chovendo forte lá fora, e o vento, unido ao cheiro de terra molhada, faz transpassar pelas cortinas esvoaçantes uma coisa inexplicavelmente deliciosa.
A minha primeira reação de todos os dias é procurar urgentemente pelo porta-retrato com a sua foto na estante, como que numa tentativa desesperada de saber se você é mesmo real. E dessa vez não foi diferente.
E então levanto-me, aos bocejos e espreguiçadelas. Aproximo-me da janela e nada consigo fazer além de me entregar ao toque da brisa em minha face, me recordando no mesmo instante do contato suave das suas mãos esparramadas pelo meu corpo.
Alongo os braços para o lado de lá da janela, e, já completamente entregue àquela situação, permito que a chuva os molhe quase que inteiros. É quando quase que instantaneamente me lembro do suor salgado de sua pele misturado, respingado e fomentado ao da minha.
Estico o pescoço mais alguns centímetros para fora, e então abro a boca, esticando também a minha língua. Sinto as gotas de chuva desabando sobre ela, e seu sabor levemente salgado torna-se doce quando recordo-me do gosto da sua pele macia em minha boca.
As gotas geladas escorrem até o meu peito, vulnerável, e me arrepiam por inteira, trazendo-me de volta a sensação de ter essas tuas mãos quentes envolvendo a minha cintura, e fazendo com que eu sinta o calafrio percorrer cada pequena porção de minha pele.
As cortinas, ainda esvoaçantes com a brisa, roçam suaves o meu corpo, aqui, ali; e eu, em uma só fração de segundos, me lembrei do seu corpo colando no meu, aqui, ali. Aqui, ali. Aqui, ali.
E, então, um som vindo da porta.
Clic.
Você havia chegado.
Depois de tanto tempo, depois de tantos anos e tantas vidas em um só dia, nem vi você chegar. Foi como ser feliz.
Dois pares de olhos que se fixam, que se entrelaçam e se desvencilham do palpável enquanto rodopiam pelo ar.
Um, dois, três, quatro passos em direção ao rádio. 
Plec. 
De repente, um solo de violão familiar aos meus ouvidos começa a tocar.
E você, em não-sei-quantos passos, chegou até mim. E me abraçou apertado, fundindo a sua alma com a minha, enquanto colocava os meus pés sobre os seus e dançávamos uma valsa torta, mas torta de goiabada.

Eu nem vi 
Quando você acordou
As cortinas
Descobriu meu quintal...

E, então, em um breve momento, abri os olhos e avistei a janela, logo a minha frente. Lá fora, a chuva aos poucos cessava, e tive a veloz impressão de que, o que deveria dar lugar a um céu ensolarado, estava, na verdade, plúmbeo. Repentinamente um pássaro azul sobrevoou a árvore do quintal e veio voando em direção a nós dois, adentrando em meu quarto e se fundindo em você —  foi quando olhei ao redor e percebi que tudo estava azul. As paredes eram azuis, os retratos, os livros, os discos e a cama também estavam azuis. Eu, envolta por seu abraço, também me vi liberta, e tudo se clareou no instante em que avistei os seus olhos: eles haviam engolido o céu.