Libertas quæ sera tamen

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O despertador tocou às sete, mas Ana Flávia já estava acordada desde quando se deitara, às duas. 
O barulho a acordou, mas não exatamente de um sono. Pestanejou por alguns segundos e, inspirando forte, levantou-se e deixou para trás a cama desarrumada, tendo o cuidado apenas de separar os pensamentos das cobertas desarrumadas, levando à escrivaninha nada além das ideias mais insólitas que já a acompanharam em suas noites mais solitárias. 
Ali, nada além de papel, caneta e o peso sobre os seus ombros — pela lei da gravidade de suas emoções, era o que há tempos a mantinha presa ao chão, impedindo-a de voar; foi quando decidiu: iria escrever uma carta para ele. 
Não tinha ideia alguma sobre como poderia começá-la. Poderia iniciar com um simples cumprimento, ou talvez com o clichê "hoje eu acordei pensando em você", o que funcionaria bem não apenas se ela ao menos tivesse pegado no sono, mas se aquele fosse mesmo o único dia em que ela havia pensado nele. Como expressar o que vai além do léxico, não sabia, mas o que queria mesmo era separar as reticências que pairavam sobre as fotografias na estante e fazer delas três pontos finais: um para a sua incerteza, outro para a sua insônia e, por fim, mais um para esse vazio que ocupava mais do que o lado esquerdo da cama.
Olhou para os próprios dedos agarrados à caneta; pálidos, vazios, como também sentia todo o seu interior. Inspirou fundo uma vez mais: o estopim:

Bem... talvez você saiba melhor do que ninguém que sempre tive a mania de querer nomear todas as emoções que encontro pelo caminho. Isso pela necessidade de estar sempre pisando seguramente em solos conhecidos; o estranho me assusta, e é nele que estou envolta desde que você se foi. Ou talvez desde que eu tenha partido...
Construí todo o meu templo ao seu redor, e hoje me parece claro que esse talvez tenha sido o maior dos meus erros. Olho para toda a estrada que percorremos juntos e sinto vontade de abrir os seus olhos e te fazer perceber que, em um nós, o eu nunca é bem-vindo,  e que retornar ligações, retribuir um gesto de carinho e não pensar nas consequências dos próprios atos faz parte do processo do querer bem. Entrelacei-me a você feito nó(s), enquanto você, por todo esse tempo, nunca se envolveu por inteiro comigo, e isso...

... não. Não estava funcionando... 
Minutos depois ela se encontrou encarando a folha de papel, incerta sobre como expressar de modo claro todo o turbilhão de ideias que há dias sobrevoavam suas noites de sono e seus dias de paz.
Na estante ao lado, dezenas de porta-retratos. Seus olhos percorriam fugazes as duas silhuetas unidas quando, com os olhos lacrimejados, amassou a carta e a arremessou longe numa tentativa de tirar de si toda a aflição de um amor não-esclarecido.
Como que em um ato desesperadamente célere, levantou-se e arrancou todas as fotos que estavam ao seu alcance. Jogou fora seus últimos escritos e desfez-se de todos os pensamentos que remetessem ao apego. Carpe dolorem. Pôs o lixo na calçada e trancou a porta de entrada.
Ali dentro, onde ninguém poderia vê-la, chorou por dias e semanas incontáveis.
Sofreu. Doeu. Cogitou ser aquele o fim dos tempos.

Mas passou.
Os espaços vazios na estante foram preenchidos por livros do Neruda e discos do Chico e da Elis, onde apoiou-se por meses. Passou a acordar todos os dias ao som de Trocando em Miúdos, quando cantava alegre:


"Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter

Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado..."


Ana levantou-se e deixou para trás a cama desarrumada, tendo o cuidado apenas de separar os pensamentos das cobertas desarrumadas, levando à escrivaninha nada além das ideias mais insólitas que já a acompanharam em suas noites mais tranquilas.
Ali, nada além de papel, caneta e a voz do Chico — pela lei da gravidade de suas emoções, era o que há tempos não a mantinha presa ao chão, fazendo-a voar a cada dó, a cada ré, a cada mi; foi quando decidiu: iria escrever uma carta para ele. 
E, dessa vez, ela tinha certeza sobre como começá-la...:


"Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde..."

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Dedico essa postagem à minha mais-que-querida amiga Ana Flávia, que deu nome à personagem e sentido à monocromia das reticências. 
Minha flor... Obrigada. Enfim, paz!