Ensaio sobre a rotina

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O homem caminhava tendo os olhos fixos ao asfalto e carregava consigo 56 maletas cheias de pedregulhos quando adentrou na livraria. Ali, entre os destaques, um romance escrito pela antiga namorada de juventude. Folheou as páginas, uma a uma, quando fugaz chegou à última, um mero reflexo de todo o relacionamento existente entre eles: tantas reticências e nunca um ponto final. 
Recolocou o livro na estante, atravessou a rua e voltou pra casa. Largou as maletas no meio da sala de estar, subiu correndo as escadas de madeira e escancarou as portas do guarda-roupa. Arrastou uma cadeira e subiu em cima dela para pegar as duas malas em cima do armário. Uma delas recheou de roupas amassadas e desconexas, como seus pensamentos ao fazerem dessa perdição seu novo rumo; já a outra, lotou de sonhos, devaneios e quimeras nunca realizadas. Desceu um lance de escadas e ganhou a rua, saindo por aí com uma passagem rumo à Boa-Fé, do outro lado da cidade.

Ali, do outro lado da cidade, a mulher só saiu de casa para ir ao mercado comprar pão. No corredor dos biscoitos, a funcionária cantarolava Cássia Eller enquanto empurrava contente as caixas do estoque — foi quando arrepiou-se, 
e clamou aos céus por uma dose maior de malandragem. Ah, seus dezenove anos...Largou o carrinho de compras cheio no meio do corredor e, embora tenha o feito, cogitou voltar pra casa. Tinha ainda que tirar a carne do refrigerador pra descongelar. Tinha que esquentar o arroz, o feijão e preparar mais mistura. Às cinco os filhos saíam da aula, e o marido já alertava a uma nova família que voltaria às nove.
Cogitou,
e foi mais que isso.
Mais longe. Mais imprevisível. Mais, por fim, genuína.
Resolveu partir com a roupa que estava no corpo, com 50 reais na carteira e um desejo revolucionário que tomava toda a sua alma. Além disso, o peso de 207 chamadas perdidas em seu telefone celular. 

Caminharam até o cair da noite-de-lua-nova, quando adentraram no primeiro bar que avistaram na primeira esquina que viraram, e a partir daí foram dois, três, quatro ou vinte copos — isso não se sabe muito bem; meros fragmentos confusos e insólitos.
Na TV, o Corujão. Em um dos ombros, um cutuque. 
Na mão, a página de um livro rasgada:


"Desejo vivido 
é ambição atualizada, 
e o calendário sempre vai virar a página, 
quer os olhos leiam realidade ou não."
[Eduardo Lazaro]

E, então, do cinza o colorido: um sorriso gerou dois. 
E disso, ah!... disso sabe-se bem...



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Ao Eduardo Lazaro, que, gentil como sempre, cedeu esse lindo fragmento de seu acervo infinito ao conto;
e ao João Pedro, por ter mencionado uma só palavra que fez toda a diferença!