Anteparo sinérgico

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Era por volta das seis ou sete horas quando o relógio despertou. 
Pude senti-lo ao meu lado espreguiçando-se, tendo o ruído de seu bocejo amenizado pela música que agora tocava no rádio. Poucos segundos depois, o som de seus passos, seguido pelo clique da porta do quarto de banho. 
O mesmo processo ocorria a cada duas voltas completas realizadas pelo relógio, que, paralelamente à assuidade de seus atos, demonstrava a indiferença com que lidava com as questões pessoais.
Meia hora mais tarde ele retornou para o quarto, vestiu-se, e certificou-se de pegar a sua maleta, não hesitando em partir para o trabalho. 
Ainda deitada, ouvi a chave entrando na ignição de seu dileto Porsche cinza – foi quando, pela primeira vez, após horas desperta do sono, uma insólita sensação de sossego, inimaginavelmente harmônica, tomou conta do ambiente.

...

Depois de seis xícaras de café, um jornal e três discos completos, decidi me levantar. Ao atravessar a porta de entrada, optei por ir até o Museu de Arte, ébria de ausência; sedenta por revelações – um processo facilitado a partir do choque visual com a arte: assim, repetida, sem sinônimos.
No primeiro andar, uma exposição de Frontin composta por grades vazias e objetos engaiolados; no mínimo, chamativo. 
Ali, um coração e duas mãos entrelaçadas dentro de uma caixa de cristal trincada. 
Ao lado de fora da sala, um grande e antigo livro aberto. Muitas páginas amareladas repletas de recados, poesias e escritos, em línguas inimagináveis, com mensagens e apreciações não só da órbita, mas do que se bem queria. Sem hesitar, abri o zíper de minha bolsa lateral em busca de qualquer objeto capaz de naquelas páginas marcar as expressões que, sabia, devia espalhar pelos quatro cantos do mundo, como uma amálgama de brilho e fulgor.
E, nessa fila, um homem a minha frente. Seus cabelos eram longos e castanhos, assim como as suas vestes, escuras e incapazes de velar a branquidão da alma. 
Com uma pena e nanquim em mãos, escrevera, com uma letra forte, como a patente latência dos olhos, e esbelta feito as linhas que contornavam o seu templo: 


"Assim que o orvalho se despedir, eu irei para casa. 
Estou indo embora para enxergar além do anteparo o que posso concluir.
E eu não sei para onde irei.
e eu não sei o que verei.
Mas tentarei, através de um momento antropofágico, retirar o poliprótico,
e trazê-lo para casa comigo.

Enquanto analisava o que escrevera, seus longos dedos acariciavam a barba escura de um modo hipnotizante. Seu olhar crítico, após instantes fixo à página, se levantou, e, talvez nem tão despropositalmente quanto fosse imaginável, fitou o meu. Os traços marcados de seus lábios esboçavam um breve sorriso torto quando, em um gesto convidativo, suas mãos se voltaram para o livro, com uma lacuna (proposital?) bem abaixo de sua escrita inclinada.
As aspas não haviam sido fechadas.
Foram dois ou três passos até que a minha caneta, por fim, tocasse a folha de papel, perdurando as impressões. E então, o estopim:

Em uma superfície longínqua de tudo o que conheço, não há nenhuma voz a sonar. 
Não há solidez à minha volta, como aqui,
com os sussurros da tua voz gostosa perto do ouvido.
Sob a luz da lua cheia, ouço o som dos trilhos dos vagões percorrerem a estação,
e, dentre a calada dos vãos da escadaria, ouço o meu nome.
Mas eu não sei onde estou,
e eu não confio em quem venho sendo.
E se eu for para casa?
A minha. A sua.
 Como poderei deixar o carmesim?





Com as aspas ainda escancaradas, mirei o seu olhar em busca de réplicas ao ponto de interrogação. 
Bastou apenas um passo.

Como uma bela manhã de sol, seus olhos me seguirão.
Enquanto você me vê vagar, amaldiçoa o passado,
ansia o futuro,
e vê, no nome do que permanece, um autêntico presente.
Porque tudo o que quero é o aqui.
Tudo o que quero é o agora.
Como já está sendo.
E como já foi.
Nossas intenções, a partir de então, perdurarão sempre um pouco mais,
e mais.
E eu almejo mais do que as memórias do que ainda não vivenciei:
almejo você.
Aqui, comigo.

E então, em um ato súbito, delicadamente tomei a pena de suas mãos e fechei as aspas, tendo o cuidado de acrescentar um título ao que compomos: Sinergia. Porque, juntos, descobrimos que duas forças unidas produzem um resultado maior do que se estivessem separadas.
Muito maior.
E a sua voz, tão doce quanto o seu olhar, proferiu as palavras mais exímias que há tempos não eram direcionadas a mim. "Vem ouvir um som, beber um bom vinho, comer alguma coisa e caminhar sem rumo por aí. Vem?". 

Foi quando, pela primeira vez, pude alcançar a maior das realidades universais: 
um só dia de amor que seja ultrapassa toda uma vida de ilusão e indiferença.
"Pois que assim seja."