Vê-lo foi ótimo, Abelardo.

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— Bem, eu... imagino que preciso ir. Já está um pouco tarde. Foi bom poder vê-la, Heloísa. Na verdade, foi muito bom poder vê-la.

(Abelardo... vê-lo foi ótimo. Deve saber que amo teus sorrisos, tão meus. Amo também os meus, por terem como consequência os teus. Ah!, essas tuas bocas!... Esses teus olhos — as estrelas que mais luzem. Vê-lo foi ótimo, com tuas mãos, teu toque. Tua distração, tuas preferências. Tuas teorias, tuas palavras. Soberbo, esse teu vocabulário. Esses teus gostos, esse teu dom. Vê-lo foi ótimo, com tua vocação, tua voz rouca após tomar um gole de café. Imensurável é esse teu olhar machadiano, clariceano, fernandiano. Tenho vontade de roubar prá mim esse teu riso discreto, misterioso. Essa estranha admiração por teus trajes antiquados, essa tua camisa, esses teus óculos de armação antiga. Sem mais uso algum. Ah!... essa tua camisa cheia de botões fáceis de se troar... Mais um gole de café. Esse teu pulôver marinho, azul, da cor dos teus olhos nos sonhos de todas as noites dos últimos anos. Um tom de superioridade, um tom de igualdade. Não são antíteses. É azul. Azul-púrpura, como a tua voz rouca após tomar um gole de café. Azul, eu disse. A liberdade é azul, e o tom da igualdade é alvo, quase branco. Te encaro. Esses teus olhos, azuis, verdes, castanhos e pretos. Me encara, me encara com qualquer um deles. Aprecio esse teu dom. Me encara. Vem cá... me dá um sorriso. A xícara está leve. O café acabou, e tua voz prossegue rouca. Fecha esse livro, os morangos já mofaram. Olha prá mim. Isso. Continua olhando prá mim. Amo esse teu dom, mas me deixa agora falar do meu. Deixa eu te contar o que fiz hoje. Preparei a minha tela com pedaços de lençóis que não chegamos a sujar. A armação fiz com madeira da janela do seu quarto. Do portão da sua casa, fiz paleta e cavalete. E fiz, então, pincéis com teus cabelos. Fiz carvão do batom que roubei de você, e com ele marquei dois pontos de fuga, e rabisquei meu horizonte. Me fala, me explica, arranja mais uma teoria tua. Inventa, bola qualquer uma só prá me satisfazer, mas ma explica! Me explica, me fala, me fala porque esses teus olhos tão azuis, verdes, castanhos e pretos brilham mais do que essas estrelas acima de nós quando me vê. Me fala, me dá uma explicação plausível. Me olha, fala comigo com essa tua voz rouca após tomar um gole de café. Esses teus gostos, esse teu vocabulário. Esses morangos mofados são só consequência. O bloqueio de escritor, o bloqueio mental, o bloqueio sentimental. O bloqueio necessário. O coração cheio, a xícara vazia. Meus olhos devem estar brilhando mais do que as estrelas, mais do que a lua, mais do que o reflexo da lente dos teus óculos. Mais do que o brilho do seu sorriso, mais do que o brilho dos teus olhos, tão meus... Consigo! Meus olhos estão brilhando, não estão? Sei-o bem, posso vê-los no reflexo dos teus. Isso é porque consigo! Consigo me expressar. Consigo resumir todo o turbilhão de pensamentos. Consigo expressar, denominar o que sinto. Isso, sim, é plausível. Entro em desespero quando sou incapaz de classificar as sensações. Mas eu consigo, agora. Consigo dizer o que está havendo, o que sinto, consigo te explicar. Deixa eu olhar nesses teus olhos azul-púrpura, responder a essa voz rouca-após-um-gole-de-café, ansiando ter um poder maior do que esses botões. Deixa eu dizer. Deixa eu dizer também...)

— ... foi ótimo vê-lo, Abelardo.