"Noites do Bogart"

/
2 Comments
"Era a primeira vez que os dois saíam juntos, e a Maria José, assim que sentaram, perguntou:
- Lês muito?
Ele não entendeu.
- 'Lês muito'?
- Livros. Gostas de ler?
- Ah. Gosto. Quando sobra um tempinho, né.
- A gente não tem tempo pra mais nada, né? Tou com um Paulo Coelho na minha cabeceira e não consigo terminar.
- Eu também!
- Que coincidência!
Escolheram, por outra coincidência, o mesmo prato. E foram descobrindo afinidades, como disse muitas vezes a Maria José, "incríveis", durante todo o jantar. Só não tinham o mesmo entusiasmo pelo Djavan e discordavam frontalmente quanto a mocotó, mas no mais as coincidências eram incríveis, incríveis mesmo.
- Parece que a gente já se conhece há tanto tempo, Maria José!
- Me chama de Zequinha.
E ele não é feio, pensou a Maria José. As costeletas compridas estavam fora de moda, mas, que diabo, podiam voltar à moda a qualquer momento. Ela perguntou:
- Gostas de cinema?
- Gosto. Viste O Silêncio dos Inocentes?
- Se vi. Loucura, né?
- Eu me identifiquei muito com o personagem.
- A moça?
- Não. Ele.
- O rapaz?
- Não, o outro.
- O tarado?!
- Por que "tarado"?
A Maria José hesitou. Talvez fosse melhor mudar de assunto. Ou talvez não.
- Espera aí. O vilão? O Anthony Hopkins?
- É.
- Você não achou que ele era tarado?
- Às vezes, só porque uma pessoa diverge de certo comportamento considerado "normal", não é compreendida. No meu caso, por exemplo...
Mas a Maria José tomara uma decisão.
- Eu não quero ouvir.
- Mas Zequinha...
- Me fala do teu trabalho. É com computador, né?
- Bem. Sim. Eu...
E a Maria José se debruçou, sorrindo, sobre o prato vazio da sobremesa, para ouvir com mais atenção. Iam se dar bem. Iam se dar muito bem. Ela só precisava tomar cuidado em certas áreas. Mas iam se dar muito bem."

(Luis Fernando Verissimo, em Comédias da Vida Privada, págs. 247 e 248)