Carmesim

/
0 Comments

Seus pés envoltos pelo velho e imundo converse azul caminhavam sobre a grama excessivamente verde e macia, e ainda um tanto úmida, trazendo a memória da forte tempestade da noite anterior. Andavam ritmados ao som a penetrar pelos seus ouvidos, Iron and Wine. Para aquela garota, apenas mais uma garota, nada poderia haver de melhor no mundo. 
Ao menos, não naquele instante.
Ao seu lado, outro par de um gasto converse, e ombros capazes de suportar todo o peso do mundo – e ele não pesava mais do que o velho violão de seu pai, pendurado na alça cor-de-céu. Sua mão direita buscou a dela, que, concentrada no som em seus ouvidos, no mais espontâneo dentre todos os seus gestos, fitou com seus olhos os dele, logo em seguida fechando-os ao sorrir. Aquele não era só mais um rapaz. 
Ao menos, não para ela.

No mais confortável dos silêncios a serem partilhados, os dois sentaram-se no banco abaixo da mais florida das árvores. Ele tirou os fones daqueles ouvidos a sua frente, que tanto sabiam sobre a porção mais subjetiva que sequer sabia que tinha  fruto das tardes recheadas de confissões deitados sobre aquela mesma grama –, e posicionou o violão sobre a sua perna. Ela, que sentia no gesto de fechar os olhos o real significado do viver, posicionou a sua cabeça sobre aquele ombro capaz de suportar o peso de todo o seu mundo, de olhos cerrados e alma plácida, sempre escancarada para os gestos provindos daquele coração a pulsar forte ao seu lado, mas tão forte que, dos seus ombros, ela era capaz de bem sentir.
Notas e melodias conhecidas e alojadas na porção esquerda do peito emergiam do acariciar de seus dedos sobre as cordas do violão, e seus pés, inquietos, acompanhavam cada uma delas numa quase-perfeição rítmica. 
Imersa na subjetividade de seus olhos sempre-fechados, sentiu repentinamente seu coração quente, quente como fogo, e, seu peito, esfumaçando-se. Imersa nesse incêndio torácico, suas pupilas castanhas escancararam súbitas toda a verdade de sua alma, clamando por socorro.
Encarou o rapaz ao seu lado, absorto em uma concentração admirável. Seus dedos seguiam seus lábios sussurrantes das mais belas palavras que já proferira, aliados à voz suave conectada aos pulmões, a sugarem todo o ar ambiente.
O amor era aquele sentimento que tornava possível um incêndio no mais completo vácuo.
Ela percorreu a mão pela sua face, alcançando os seus cabelos e alojando os dedos em seus cachos enredados, que ali encontraram moradia. Emaranhou-se inteira nos fios daquela barba, encontrou abrigo por debaixo do colarinho de sua camisa e viu o incêndio alcançar cada uma das casas de seus botões. 
De olhos bem abertos, ouvidos atentos e pupilas dilatadas, ela de repente captou o sentido da vida. E, daquele jeito, ele soava ainda mais subjetivo do que nunca.
Ele, sentado ao seu lado, trazia na garganta o nó do disfarce. O incêndio, iniciado em seu peito, mal sabia ela, percorreu cada uma das notas daquela velha música a ressoar de seus dedos e alcançou-a, logo alastrando-se ao longo de toda aura que os envolvia.
A música era aquela arte capaz de rumar a vida para o lado certo.
Suas mãos repousaram sobre o braço remendado do velho violão, e os dois, se antes aparentemente imersos no conforto do silêncio, tinham agora explícitos no olhar a quentura do lume que envolvia não só a eles, mas a todo o parque. O fogaréu alcançou o banco e a árvore sobre eles, tudo empestando. Chegou à grama sob seus pés, às árvores da face oposta e atravessaram a margem do lago, transpassando-o.
Ela sorri enquanto ele redireciona para os seus lábios o olhar. O incêndio propaga de seu peito e, por fim, alcança-os completos enquanto beijam-se na mais lenta das possibilidades urgentes, com intensidade sentindo o ardor que juntos produziam e que percorria cada uma de suas células. 
Desvencilham os lábios indissociáveis, e, enquanto fitam-se firmes, o céu sobre eles subitamente assume tons escarlates  o silêncio dos mais confortáveis partilhado. Foi quando, sorrindo, deram-se conta de que já não havia mais horizonte sem a vivacidade purpúrea a refletir a cor do fogaréu, a mesma do violão vermelho agora repousado pacato sobre o velho banco  tão pacato quanto a calmaria posterior a qualquer salvação.