Sous le ciel de Paris, je ne regrette rien

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Seus pés caminhavam apressados pelas estreitas ruas escuras de Paris, e a porta de seu ateliê ficara propositalmente aberta. Equilibrava-se em seu novo scarpin preto, caminhando tão rapidamente, de modo que até mesmo as inúmeras informações que habitualmente passavam por sua mente parecessem estar quase parando.

Cela me donne tout ce dont j'ai besoin
Et m'aide à coexister avec la froideur.

Suas mãos estavam ainda sujas de tinta, o que a fez abrigá-las no bolso de seu casaco vinho – pura elegância – e, impropositalmente, sentir o maço de cigarros que lá havia colocado dias atrás. O suspiro que dera nesse momento indicara o mais intenso dos alívios. Seus longos dedos não hesitaram em procurar o isqueiro em sua bolsa bege – dispendiosa, um presente do que os ponteiros do relógio indicavam por passado –, logo percorrendo a roldana de metal engelhado uma ou duas vezes, tendo como consequência, finalmente, uma faísca.
Ah! a primeira tragada! No mínimo confortante.
Pôde sentir todo o seu corpo se arrepiar com o vento frio, fazendo-a perceber que o céu parecia apresentar uma imensa probabilidade de desmoronar a qualquer momento – não era preciso ser vidente para sabê-lo.
Correra, abrigando-se a tempo num prédio qualquer, logo percebendo que tratava-se de uma Biblioteca. Após propositalmente derrubar o cigarro, exterminou qualquer vestígio de chama ali existente com um simples pisar. E outro passo, que vai, que vem.
"ROMANCES QUE NINGUÉM DEVE MORRER SEM LER - VOL. XI" logo ali, em destaque na estante — ao deparar-se com este livro, não pôde entender como estava o fazendo pela primeira vez — era apaixonada por Bogart e Bergman. Emocionou-se nas incontáveis vezes em que Sam tocou As Time Goes By para Ilsa. Ela era, provavelmente, a maior apreciadora de histórias de amor que já havia pisado nos tacos amadeirados daquele lugar.
Quem a via ali, adentrando vagarosamente em cada universo propiciado pelas mais diversas estantes, jamais poderia imaginar o que sobrepassava aquele grosso casaco de lã. Todos que a observavam caminhando em direção aos livros de história da arte nunca seriam capazes de perceber o abismo em que imersava a sua alma
— já ela sabia bem: para Van Gogh, estaria no fecho de seus dias; já para Rembrandt, seria fácil a representação desse fato através de linhas extremamente complexas e complementares. Exatamente como imaginava ser os dilemas de sua alma: falciformes.
Seus longos dedos caminhavam por entre os períodos artísticos indicados nas etiquetas, até alcançar o Romantismo. Pegou o maior dos livros e abriu em uma página qualquer. "Liberdade, igualdade e fraternidade", dizia um dos trechos. A liberdade é azul, como aqueles olhos... Aqueles, que tanto precisava esquecer.
E, então, pela primeira vez, o livro pareceu leve demais para os seus braços finos e delicados. A força que adquirira ao lembrar dessa obrigatoriedade, nada proposital, a fez deixar o local.
E então correu.
Correu mais depressa do que as batidas do coração, nos bons tempos fechado para balanço.
A chuva percorria os seus cabelos, as suas roupas caras e borrava o delineador marcado em seus olhos, já não mais havendo divergências entre as gotas ácidas e as salgadas.
Ao alcançar o ateliê, não preocupou-se em revestir as suas roupas de grife com um avental. Logo preparou a tela com pedaços de lençóis que não chegaram a sujar. Suas mãos envolveram a tinta azul, azul como a daqueles olhos. Trabalhou-os em luz e sombra, preparando a armação com a madeira da janela do seu quarto e do portão da sua casa. Fez paleta e cavalete, destilando óleo de linhaça através das lágrimas que não brincaram com aqueles olhos, azuis como o céu de sua tão querida cidade em domingo ensolarado. De sua cama arrancou pedaços, que talhou em estiletes de tamanhos diferentes, embaçados pela umidez de seus olhos. Decidiu fazer, então, pincéis com os cabelos. Aqueles mesmos cabelos, com um tom castanho que precisava partir junto aos olhos...
Com seu baton marcou dois pontos de fuga, e arriscou rabiscando o próprio horizonte.
Com a tinta preta, escreveu, sobre tudo e pela primeira vez sem se preocupar com a estética: "De você fiz o desenho mais perfeito que se fez. Os traços copiei do que não aconteceu. As cores que escolhi, entre as tintas que inventei, misturei com a promessa, que nós dois nunca fizemos, de um dia sermos três."
Depositou a tela sobre a mesa próxima à janela, de modo que as gotas da chuva caíssem sobre ela, integrando-a e compondo-a
— talvez algo meramente proposital.
Repousando-se sobre a cadeira estofada de madeira, adormeceu ao lado de uma garrafa vazia e quebrada de Château Bonalgue. Ao despertar, dispôs o quadro em uma caixa vermelha, cuja tampa possuía uma fita dourada, formando um bonito laço. O endereço era sabido
rua, número, bairro e cidade: viviam todos na ponta da caneta.

Após dias de agonia, "e
ssa pessoa não reside mais neste endereço", disse o entregador, devolvendo-a a caixa.
Passou horas encarando a tela, repleta de rabiscos, planos de fuga e sentimento. E, em um ato súbito, suas mãos alcançaram a tinta branca, que fugazmente recobriu todo a tela, tornando-a nova.

Foi quando, pela primeira vez, sentiu-se finalmente azul. Tão azul quanto a liberdade...